segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Um Ato de Deus FENÔMENO DE SER AVÓ (Ô)

Hoje pela manhã, rotina da segunda-feira, começo a peleja, é hora de levar os netos para casa. Junta treco daqui d'acolá, um faz biquinho de choro o outro começa a pisar duro. Vamo-que-vamo. Na garagem eles manobram, "dá não vô" diz o pequerrucho, "dá sim vô" diz o mais velho, hábil manobrista; Consego sair, paro no posto para encher o tanque com 15-zão, desço pago e quando volto a kombida tá vazia. "Raios-mil-vezes-raios" dou umas duas voltas no veiculo, sumiram; Na terceira uma cabecinha loura na janela e um buzinaço no ouvido, os encontro a bordo. Saio do posto ganho a avenida, quatro olhos atentos ao transito e no condutor, "olha o sinal vô", "acelera vô", "ô võ tira da marcha treis", "vô não vai colocar na marcha quatro", vô não é ai não, poe a marcha de arrependimento e volta. Escuto o pequerrucho cochichar " ô joão ... o pai não erra o caminho", e vamo-que-vamo... Entrego as feras, o Jão Amyres e o Amyres Enrique, para a nora Júlia.
Volto à casa, agora silenciosa convida à leitura. Releio uma cronica de Raquel, justo sobre netos e avós.
Chamo a VÓ, lemos em silencio, lágrimas ..., tão verdade, tanta sorte... Um Ato de Deus!


Raquel de Queiroz (*)

Netos são como heranças, você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu...

É, como dizem os ingleses, um Ato de Deus.

Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimonio e sem as dores da maternidade, o neto é um filho apenas suposto. Trata-se, realmente, do sangue do seu sangue, filho do filho, mais filho que filho mesmo...

Cinqüenta anos, cinqüenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava.

Não lhe incomoda envelhecer, é claro.

A velhice tem suas alegrias, as suas compensações: todos dizem isso, embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto, mas acredita. Todavia, também obscuramente, sentir os seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores com suas paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essa efervescência. A saudade é de alguma coisa que você tinha e que lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade: bracinhos de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor.

Meu Deus, para onde foram as suas crianças?

Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações, você não encontra de modo algum as suas crianças perdidas.

São homens e mulheres adultos; não são mais aqueles que você recorda. E, então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe coloca nos braços um bebê.

Completamente grátis e nisso é que está a maravilha.

Sem dores, sem choros, aquela criancinha da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida.

Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um filho seu que lhe é devolvido. E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de amar com extravagância. Ao contrário, causaria espanto, decepção se você não o acolhesse, imediatamente, com todo aquele amor recalcado que há anos vinha se acumulando, desdenhado, no seu coração.

Sim, tenho certeza de que a vida nos dá netos para nos compensar de todas as perdas trazidas pela velhice.

São amores novos, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixados pelos arroubos juvenis. É quando vai embalar o menino e ele, tonto de sono abre o olho e diz:

- Vó!

Seu coração estala de felicidade, como pão no forno!

(*) Rachel de Queiroz é escritora da Academia Brasileira de Letras

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